A versão Disco Elysium — The Final Cut foi lançada em 30 de março para PlayStation 4 e PlayStation 5, também disponível a partir de uma atualização para os jogadores dos PCs e traz dublagem de voz para a maioria das interações, além de uma melhoria em termos de resolução e taxa de quadros, e adição de novas missões e eventos. Também adapta, pela primeira vez, o RPG aos controles.

Como funciona Disco Elysium?

Trata-se de um título muito focado no Role Play (interpretação de um papel), tendo sistemas de RPG muito bem definidos e instigantes como suporte para essa interpretação. Sua estrutura do ponto de vista do “que o jogador faz” se confunde com o gênero dos adventures – ou point and click – no qual cabe a quem joga passear pelo cenário coletando informações, itens e equipamentos para poder prosseguir na investigação. Os pontos-chave desta investigação, entretanto, se dão a partir de checagens ancoradas nos valores dos atributos e competências do personagem. Se meu personagem tem um bom valor de “Instrumento Físico”, a probabilidade de conseguir abrir uma porta na marra é maior, por exemplo. É possível alterar os atributos a partir de pontos ganhos ao subir de nível, bem como engajando com os diferentes sistemas do jogo: o gabinete de reflexão, a utilização de ferramentas e drogas, as roupas vestidas, além das informações previamente obtidas e das interações com algum NPC envolvido. Sendo assim, o jogador precisará mexer bastante nos menus, realizando as alterações e fazendo as escolhas de todos esses aspectos elencados – os quais comentarei mais profundamente adiante no texto. Será necessário, também, andar para lá e para cá em Revachol, interagindo com pontos de interesse, objetos e, sobretudo, personagens. Todas essas interações resultam em uma quantidade bastante substanciosa de texto. Isso traz algumas implicações. A primeira delas é bastante prática: quem joga deve gostar ou pelo menos não se importar em passar um bom tempo lendo. É importante destacar a existência de opção para aumentar o tamanho da fonte das letras, porém a maior disponível ainda pode não ser a desejada dependendo da televisão. No meu caso, o jogo pediu uma proximidade um pouco maior, mas nada desagradável.  A segunda implicação é sobre o teor dessa escrita. Disco Elysium é muito bem escrito, mas traz muitos conceitos e momentos históricos próprios daquele mundo, ainda que a ampla maioria seja análoga aos momentos e acontecimentos reais de nossa história. Os personagens são interessantes, e os pensamentos do detetive protagonista costumam roubar a cena, mas todo esse ponto narrativo do título é mediado por texto e atuação de voz em todo o conteúdo na versão Final Cut. Destaco, também, o cuidado da equipe em resolver problemas da forma mais rápida possível. O lançamento do jogo nos consoles veio acompanhado de alguns bugs que poderiam inclusive travar o progresso. Já foram corrigidos a partir da atualização 1.2 e 1.3, e o pequeno time de desenvolvedores continua trabalhando para corrigir e melhorar a experiência. Além disso, cabe ressaltar a excelente localização para o português brasileiro. Com tanto texto, tal tradução é essencial para os jogadores daqui.

Atributos, competências e formas de se ler o mundo

A trama de Disco Elysium começa com nosso protagonista acordando em um quarto de hotel. Um quarto quebrado, destruído e possivelmente cheirando muito mal. A partir daí tomamos o controle deste detetive, e precisamos compreender quem é essa pessoa, qual mundo está inserida e, no meio de todos esses problemas, resolver o caso de um enforcamento no bairro.  Antes disso, porém, devemos montar a build do personagem, escolhendo entre quatro aspectos: inteligência, psique, capacidades motoras e físicas. Cada uma desses quatro grupos possui 6 competências. A princípio, escolher 6 pontos em Inteligência não apenas garante um valor base de 6 para todas as habilidades ligadas ao atributo, como também coloca a possibilidade de aumentá-las até o valor de 12 ao longo da jornada. É bastante importante, porém é possível realizar alterações e evoluir cada competência durante o jogo. Nosso detetive protagonista interage com o ambiente e com ele mesmo a partir dessas 24 competências. Aliás, não se tratam apenas de atributos, mas sobretudo formas de se ler o mundo, pois cada uma dessas características geram pensamentos sobre os fatos, conversas e situações vividas pelo policial. Elas geram a forma como ele compreende todo aquele contexto. Este é um dos aspectos mais interessantes de Disco Elysium, pois além de ter um impacto pivotal na narrativa, conversa diretamente com os sistemas de RPG quando utilizamos nossa capacidade em cada uma dessas 24 competências para conseguir passar pelas checagens do jogo. Existem dois tipos, as checagens brancas e vermelhas. Estas últimas só podem ser realizadas uma vez, enquanto as primeiras podem ser repetidas depois de um tempo, inclusive com maior probabilidade de acerto caso consigamos mais informações ou uma ferramenta melhor, por exemplo. As checagens se dão em rolar de dados, e a maior probabilidade é sempre de 97%, pois a combinação de 1 com 1 dos dois dados sempre resulta em falha, assim como a de 6 com 6 resulta necessariamente em sucesso. Disco Elysium é um expoente narrativo da mídia justamente por integrar mecânicas e sistemas com a forma como aquele mundo se apresenta para o jogador. Em uma única campanha, é impossível engajar com todos os pensamentos. Dessa forma, os atributos selecionados, evoluídos e melhorados são aqueles que vão gerar discurso sobre a cidade, pessoas e acontecimentos. Como apontado anteriormente, é possível interagir com outros sistemas para “moldar” os atributos. O mais interessante destes é o dos pensamentos.

O Gabinete de Reflexão

A partir das inúmeras interações realizadas pelo ambiente do jogo, o protagonista pode começar a desenvolver uma linha de pensamento. Podem ser aspectos da própria existência dele, ou até mesmo reflexões sobre arte, política e sociedade. Cada pensamento gera um bônus positivo ou negativo durante as horas de amadurecimento dele, e outro após ter sido completado.  Além de alterar atributos temporariamente, tais pensamentos podem ser uma fonte de dinheiro ou mesmo experiência, a depender do resultado. Dessa forma, tal sistema é essencial para ajudarmos a melhorar nossa build e até mesmo ganhar mais níveis. Como de costume no jogo, também tem uma implicação narrativa, pois a finalização da reflexão gera uma resolução em texto, capaz de dar mais pistas e informações sobre o personagem, Revachol e toda a sociedade à sua volta. Não é a única forma de “progressão” do personagem, pois também é possível utilizarmos ferramentas, roupas e drogas para moldar o valor dos atributos e aumentar as chances de uma rolagem favorável. O primeiro grupo traz objetos mais óbvios, como pés-de-cabra, alicates, lanternas, etc. A moda tem um grande destaque, pois cada objeto vestido também dá bônus positivos ou negativos para diferentes competências. Bebidas e drogas também se fazem presentes, não apenas enquanto objetos, mas também do ponto de vista do Role Play e de algumas missões. Você pode optar por não beber, fumar ou se drogar durante a campanha, e isso terá implicações em diálogos, checagens e até mesmo nos finais. Mas além das drogas serem mostradas como coisas complexas, com efeitos positivos, negativos ou não necessariamente qualificáveis, também são poderosos itens para ganhar bons bônus de atributos. Talvez aquela melhoria essencial para vencer uma checagem particularmente desfavorável. Todos esses sistemas falam muito sobre a forma como o mundo é revelado para o jogador a partir de qual protagonista ele está vivendo, e também sobre a progressão na investigação principal e das missões secundárias da campanha, mas a interpretação de papel ainda é um fator decisivo e a forma pela qual quem joga decide agir e tomar partido.

Uma narrativa excepcional

Disco Elysium não se exime de tecer comentários políticos. Não é daqueles casos onde a prerrogativa do Role Play nas mãos do jogador são acompanhados de um papel de isenção dos desenvolvedores. Este RPG cria um mundo no qual cada personagem, por mais “fora da caixa” que seja, como Cuno e Thiago, por exemplo, respondam à realidade em que vivem. Eles são frutos de seu tempo. Frutos das condições de existir e socializar naquele espaço. E engajar com esses personagens e esse mundo pressupõe ação, e não somente a leitura de mundo feita e apresentada pelas competências melhoradas pelo jogador. É necessário resolver os problemas, progredir na investigação. Há urgência, e falar mais que isso seria cair em um spoiler bastante sacana, pois a graça de Disco Elysium é a forma como ele afunila os acontecimentos para revelar mais sobre os atores e correntes daquele local. É preciso tentar resolver as coisas de alguma forma. Cada objetivo é “resguardado” por diversas checagens. Sendo assim, cabe a quem joga descobrir a melhor forma de resolver a partir da build do detetive, mas também a partir de qual personagem estamos interpretando. Se não queremos ser um protagonista racista – e quem quer? – é válido aprender uma linha de pensamento supremacista para agradar um personagem e prosseguir para o local desejado? Disco Elysium brilha no encontro entre a interpretação de papéis e todos os sistemas intricados de jogo. Tudo gera interações e ações narradas por uma percepção de mundo própria dos atributos do personagem, das formas de se ler o mundo. Brilha, também, ao criar um rol de personagens muito bem definidos para interagir. Das falas enigmáticas, porém lógicas da artesã de dados, até o imponente burocrata do Sindicato, cada NPC é muito bem escrito e representa posições dentro de todo o imbróglio político e social do jogo. Não se enganem, o enforcamento que dá o pontapé inicial representa muito mais que um simples crime.

Conclusão

Disco Elysium – The Final Cut é um RPG altamente sistêmico no qual todo o caráter de jogo funciona e se imbrica para gerar não apenas as interações do jogador com o título, mas sobretudo a forma como o próprio mundo se revela. Seus personagens e ambientes são marcantes, tanto do ponto de vista visual quanto literário. Os mistérios sobre o crime, o protagonista e aquele mundo vão sendo tateados e finalmente solucionados pela forma como quem joga interage com as mecânicas e sistemas de jogo, e principalmente pela construção e interpretação do personagem. Além de todas as suas qualidades enquanto videogame, o título não se exime de mostrar uma ampla realidade e a forma como alguns posicionamentos políticos a enxergam e disputam. Disco Elysium – The Final Cut era um dos jogos mais esperados de 2021. E aí, qual é o seu?

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