Vivendo uma vida de cada vez no Switch
Uma narrativa linear normalmente é aquela que condiciona a audiência a prosseguir sempre por um caminho pré-determinado e tem como função básica expor uma mensagem ao seu receptor do jeito que ela é, moralmente imutável. A ideia é causar um impacto direto no receptor, sem que ele exerça muito controle no decorrer do enredo. Com o advento das evoluções tecnológicas, as narrativas passaram a exercer um caráter participativo, multiforme, que oferece possibilidades para que o próprio público esteja no controle.
O videogame é uma dessas formas de contas histórias, mesmo em títulos considerados mais “lineares”. Em Super Mario, por exemplo, o fato de o jogador decidir pular ou não em cima do Goomba logo no começo do jogo já configura uma espécie de ramificação multiforme, visto que são possibilidades diferentes de desenvolvimento do jogo, uma vez que isso influencia na pontuação final e mesmo que, em ambos os casos, a linha de chegada seja exatamente a mesma. As mínimas decisões, portanto, importam. Dita ideia foi levada a novos patamares por Live a Live, que se tornou um dos principais expoentes de narrativa fragmentada, justificando um pouco o motivo de ter conseguido angariar uma comunidade própria, mesmo sem nunca ter chegado no ocidente. Sua proposta básica é a de trazer várias histórias individuais e separadas pelo tempo e pelo espaço, como se o jogador tivesse a oportunidade de viver várias vidas diferentes (daí o nome do game).
Essas “vidas” podiam — e podem, no caso do remake — ser escolhidas em qualquer ordem pelo jogador, que influenciava diretamente na progressão do jogo de uma maneira ampla, montando seu próprio quebra-cabeça narrativo. Assim, no instante em que o New Game é dado, uma lista com nove diferentes histórias disponibilizadas para serem escolhidas, cabe a nós escolher a primeira que nos chamar atenção e finalmente começar sua própria aventura. Tal estrutura de narrativa fragmentada coloca Live a Live em um campo de experimentação — o que normalmente não passa de desculpa para situações em que certas ideias não rendem todo o seu potencial logo de cara. Com várias pequenas histórias distintas, o que Live a Live faz é justamente experimentar, testar, brincar com vários gêneros distintos e aplicá-los à estrutura de um RPG, fazendo pequenos ajustes pontuais que variam de acordo com a ambientação determinada. Por exemplo, o capítulo da pré-história já leva em consideração que seu potencial jogador provavelmente fará escolhas dentro de uma ordem cronológica, apresentando-se como uma espécie de tutorial velado com ensinamentos de sistemas que se repetirão ao longo dos outros fragmentos de história. O que mais chama atenção aqui é a existência de um overworld genérico em que o personagem pode grindar e pela completa ausência de diálogo, dando a entender que se trata de um enredo que se passa antes mesmo da invenção da palavra.
Em contrapartida, a pegada trazida pelo capítulo do Futuro Distante é completamente voltada para a história, servindo principalmente como lore dump, ou seja, exposição excessiva da mitologia que o título tenta fazer e interligar entre os vários enredos. Enquanto aquele que teoricamente é o primeiro — se tentarmos identificar uma espécie de linearidade através da própria cronologia histórica — se mostra um tutorial de gameplay prático com o mínimo de história, o futuro distante serve como um espelho e traz uma experiência pesadamente narrativa. Preenchendo esse buraco, há outros períodos históricos, cada um com sua proposta singular. O tempo presente, por exemplo, é praticamente uma boss rush, visto que ele conta a saga de um artista marcial que quer se tornar o campeão do mundo. O do velho oeste, por sua vez, também é bastante curto e traz uma espécie de puzzle com tempo pré-determinado para ser resolvido. O fragmento que se passa no Japão durante o período Edo tem uma proposta stealth que permite ao jogador engajar combates contra inimigos ou simplesmente passar furtivo. Aventuras situadas em um futuro próximo — que inclusive é o mais tradicional de todos os segmentos — e na China Imperial (cujo diferencial é o personagem que não sobe de nível, mantendo-se com os mesmos atributos até o fim do seu enredo) fecham o compêndio principal. Quando todos os capítulos são finalizados, a idade média é desbloqueada. Ao completá-la, o capítulo final, amarrando toda a trama, é liberado. Em termos de conclusão, há três finais distintos que vão depender dos personagens escolhidos para o embate no capítulo final.
De um modo geral, essa estrutura, por mais interessante que seja, acabou jogando contra a qualidade geral de Live a Live, visto que todas as aventuras acabam mostrando sempre uma narrativa muito precária ou desequilibrada no seu ritmo e formas de exposição da trama. O capítulo da pré-história, por exemplo, logo se torna chato por conta de seu humor banal e que parece ter sido feito visando um público infantil. Mesmo os outros segmentos acabam ficando um pouco a desejar na profundidade que eles poderiam apresentar. Ninguém está pedindo a reinvenção da arte narrativa como conhecemos hoje, mas o normal seria esperar algo mais do que um episódio comum de um desenho animado voltado para as manhãs de sábado (expressão normalmente utilizada nos Estados Unidos como uma forma de exemplificar estruturas de roteiro batidas e sem inspiração, como a maioria dessas animações infantis normalmente produzidas a toque de caixa, como as séries mais clássicas de Scooby-Doo). A impressão geral, no fim das contas, é como se Live a Live fosse uma coletânea de aventuras forjadas por criadores ilustres de RPG Maker, dado o escopo e abordagem de cada um desses segmentos. E olha que isso é dito com todo o respeito do mundo, visto que a plataforma em questão é capaz de produzir experiências incríveis, mas isso não muda o fato de que se trata de um software conhecido justamente por ser uma porta de entrada e marcado justamente pelo amadorismo de boa parte do que é produzido nela. Dessa forma, por mais que Live a Live seja um título voltado para narrativa experimental, faltou abrir mão desse caráter de teste para que houvesse um foco um pouco maior na execução, ou seja, menos teoria e mais prática.
Um RPG simplificado by Square Enix
O fato de serem várias narrativas distintas não é exatamente nenhuma reinvenção da roda, afinal, todas elas bebem diretamente de vários estilos e gênero de outros games que já faziam sucesso na era do SNES. Entretanto, a verdadeira sacada de game design foi pegar todos esses arquétipos temáticos já batidos e reuni-los em um único jogo com um escopo próprio de jogabilidade, no caso, o RPG. Em termos diretos, o combate de Live a Live é o mesmo de um RPG de turno simples baseado em barra de ação e um toque de RPG tático. Ele funciona da seguinte forma: a cada ação realizada pelos bonecos envolvidos na batalha, a barra de todos é preenchida e, uma vez que alguma se enche, chega a vez do combatente em questão. Há várias ações possíveis, como ataques especiais e utilização de itens, além do próprio movimento, que utiliza um sistema de células tal qual um RPG tático. Isso também influencia no direcionamento dos ataques, que podem ser direcionados a células próximas, distantes, por área, etc. O problema central é que são pouquíssimos os momentos em que as habilidades do jogador são colocadas à prova, pois é possível simplesmente ir subindo de nível na base da sorte ou com o conhecimento mínimo de um sistema que já é consideravelmente raso. Mesmo os atributos responsáveis pelos buffs, debuffs e nerfs podem até ser úteis, mas dificilmente se mostram cruciais para o desenrolar da campanha. O desafio oferecido e minúsculo. Na reta final de cada história, inclusive, ataques bem mais fortes costumam ser desbloqueados e o andamento do game vai se tornando cada vez mais automático e desbalanceado. Considerando o estilo de movimentação utilizado pelo sistema de combate, entender de posicionamento é provavelmente o principal conhecimento que o jogador comum precisa ter para conseguir se virar nos conflitos do game. Essas mecânicas ultrassimplificadas também têm bastante a ver com a pouca implicância que uma narrativa tem sobre a outra. Não adianta ficar upando demais um personagem ou colocar metas de habilidades exageradas, que exijam grind. Afinal, nesse caso, o jogo está correto, pois seria perda de tempo tentar inflacionar ainda mais o tempo de cada uma das narrativas de Live a Live, que são intencionalmente sucintas e propositalmente voltadas mais ao storytelling em si. Esteticamente falando, Live a Live não é necessariamente ruim, mas também não é exatamente o melhor dentre os produzidos pelo Tomoya Asano, como Octopath Traveler e Triangle Strategy, que seguem no mesmo modelo de HD-2D, composto basicamente por cenários poligonais tridimensionais com texturas em tilesets e com elementos em spritework que contrastam com o cenário. Enquanto o trabalho de sprite dos próprios personagens é verdadeiramente bonito, as texturas utilizadas nos backgrounds se mostram um pouco precárias por conta da intenção em tentar reproduzir as utilizadas no game original. Além disso, nota-se que, a ausência de certos efeitos estéticos, como a névoa que ajuda a disfarçar as arestas serrilhadas, tiveram uma influência negativa na percepção geral do todo. Em contrapartida, o upgrade mais brilhante recebido pelo remake de Live a Live está em seus atributos sonoros. A trilha sonora, composta originalmente pela lendária Yoko Shimomura, recebeu uma reorquestração de respeito, otimizando a atmosfera trazida por cada uma das histórias que, por serem ambientadas em contextos tão distintos, conseguem aproveitar a variedade de gêneros e estilos que um Super Nintendo era incapaz de reproduzir na época do Live a Live original. O trabalho de voz também foi singularmente positivo.
Live a Live vale a pena?
É interessante que a Square Enix, com a produção de títulos como Octopath Traveler, Triangle Strategy, Tactics Ogre, Bravely Default, ou mesmo os Voice of Cards, do Yoko Taro, tenha conseguido encontrar um modelo de produção autossuficiente para títulos de menor escopo do que exigiria um Dragon Quest ou Final Fantasy, por exemplo. Live a Live, por sua vez, acaba entrando nesse bolo. Por mais que o game seja precário até demais em alguns aspectos, é inegável que o tratamento que ele recebeu no processo de releitura tenha sido bastante competente. Além disso, ele pode ser esquelético para os padrões de hoje, mas ainda é uma peça importante da história dos games por ter, com sua proposta experimental de narrativa multiforme e ramificada, aberto as portas da viabilidade para aquele que é amplamente considerado um dos maiores RPGs já produzidos pela indústria: Chrono Trigger.
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